terça-feira, 23 de junho de 2009

Sonhos dantescos



De repente, a música de uma flauta doce me desperta, com sua melodia suave e reconfortante. Saio do meu quarto nauseante como se estivesse de ressaca, a música parece me chamar mas não sei qual o caminho a seguir, pois ela emana em todos os lados da casa. Começo lentamente a descer as escadas, e o ranger do assoalho é tão alto que quase ofusca o som da flauta, e aperta ainda mais os miolos da minha já enfraquecida cabeça. Observo o quadro localizado logo ao lado, na parede. A pintura do barquinho com um pescador solitário na pequena vila de água cristalina obviamente está se movendo. Eu não estou ficando louco! O vento quente, posso sentir a brisa, cria minúsculas ondas no mar tranqüilo e faz as árvores dos morros circundantes balançarem morosamente. Por um instante fico relaxado e feliz, mas no momento em que piso em mais um degrau da escadaria, um silvo agudo penetra em minha mente e causa uma dor dilacerante. Sinto que existem milhões de vermes arrancando pedaços do meu cérebro. Tento gritar, mas apesar de sentir que a musculatura da boca faz o seu trabalho, não há nenhum som. Perco a força nas pernas e desabo escada abaixo, batendo a cabeça no chão com força.

Quando acordo, o irritante silvo agudo foi embora, bem como minha ânsia de vômito. Já a melodia da flauta doce persiste, e continua me chamando. Ao que parece o som vem de fora da casa. Abro a porta de entrada e me deparo com a majestosa floresta, fazendo com que o som da flauta se misture com o canto de uma centena de pássaros e o barulho do mar, que não parece muito distante. Grandiosos jequetibás e figueiras se apresentam em sintonia com arvores esguias e retorcidas, cobertas por uma variedade de bromélias e orquídeas. A vegetação é tão densa que apenas é possível ver algumas nesgas do sol. Sigo ao norte e a música vai aumentando cada vez mais. Viro a direita numa enorme pedra coberta de limo onde um velho babuíno se encontra sentando. Ele parece estar me esperando e faz um sinal para que eu o siga. Faço o que o macaco manda, e durante a caminhada a vegetação vai se rareando, enquanto a melodia cresce. Quando me dou conta, a floresta já ficou para traz, e foi substituída pela areia fina de uma tranqüila praia, um pequeno balneário em meio a mata fechada, onde havia apenas um minúsculo casebre de madeira. O macaco indica que devo entrar no local. Obviamente a música vem lá de dentro.

Entro no casebre. A melodia está mais forte do que nunca, mas não há ninguém no local. Não há qualquer tipo de mobília, apenas uma berrante privada rosa pink encravada no chão, destoando completamente do ambiente. Mas é exatamente de lá que a música vem, então me aproximo. Uma placa pendurada na descarga indica: “Perigo! Não de a descarga”. Levanto a tampa, e o que havia dentro da privada obviamente não era uma flauta doce, e sim um enorme e podre cagalhão assobiando a melodia. O fedor que sai dele é tão intenso que sinto que toda a natureza em volta foi dizimada em detrimento de um enorme lixão. A ânsia de vômito e a sensação de ressaca voltam, o que faz com que eu ignore o aviso e dê a descarga. O cagalhão foi-se embora, levando consigo toda a música. Um silêncio profundo reinava agora.

A porta do casebre de repente se abre e um grande clarão branco surge, ofuscando minha vista. Sigo até a saída hipnotizado pela sua luz. A pequena casa de madeira se desfaz, assim como todo o cenário anterior. Agora estou em meio a uma selva de pedras, no centro movimentado de uma enorme metrópole onde não há mais o barulho de flauta doce ou pássaros cantando, mas sim o farfalhar desordenado de buzinas, gritos e máquinas trabalhando. Pelo jeito o cagalhão possuía alguma força sobrenatural que sustentava um equilíbrio entre a cidade e o ambiente paradisíaco anterior. Mas isso é passado. Um calor infernal se espalha pelo ar, me sinto sufocado com o ar tóxico. Quando procuro o céu, vejo apenas densas nuvens de fumaça lhe cobrindo, e uma chuva verde que cai corroendo carros, deformando as inúmeras construções e deixando as pessoas em alvoroço. Um gigantesco urubu aparece ameaça me engolir por inteiro. O silvo agudo retorna da boca do urubu, com maior intensidade em minha mente. Tento gritar mas novamente não sai som algum. Desespero.

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