terça-feira, 18 de agosto de 2009

A extraordinária história de Ariri Pistola


Em vista que o Google não possuí referências concretas sobre o ilustre personagem, contabilizo um pequeno favor aos anais da história digitalizada. Um tanto longo, eu sei, mas vale a pena ler até o final.

Não se sabe ao certo quando Ariovaldo Jesus Ferreira nasceu, mas especula-se que tenha sido por volta de 1830 num pequeno casebre no inóspito sertão cearense, concebido como caçula de outros cinco irmão homens. O pai foi morto numa emboscada quando Ariovaldo ainda era criança, e o restante da família foi pouco a pouco se desintegrando pelas doenças da fome ou por balas efêmeras de destino certeiro. No decorrer deste caminho sem rumo dos nômades famintos, o caçula se viu sozinho no mundo quando a mãe exaurida pela anemia não acordou de um sono sem sonhos. A desnorteada criança foi acolhida por Virgílio, um velho e solitário fazendeiro, a muito tempo a espera da ceifeira maldita para encontrar o filho que nunca teve e a mulher, que morreu durante o parto. Ariovaldo tornou-se um bom vaqueiro, trabalhava com o artesanato do couro e logo aprendeu a manusear uma pistola. A criança virou adulto quando, num suspiro, Virgílio expirou sua passagem terrena para juntar-se a família perdida, deixando a fazenda e todos os bens ao menino que tornou seus últimos anos de vida um pouco menos ordinários.

Ariovaldo passou então a ocupar-se com abnegação das tarefas para manutenção da propriedade, decidido a manter viva a herança do velho Virgílio. Com o passar do tempo, e o aporte dos sortudos, fez multiplicar seu gado e expandiu as terras a ponto de logo se tornar um respeitável fazendeiro na miserável região. Contratou peões para cuidar dos seus limites e trabalhar a rês, vendendo o couro e a carne aos comerciantes de Quixadá. Cresceu com os mesmo perfil viril e rude do pai que não conheceu, sendo um homem sisudo cujo espírito permanecia fechado em si mesmo. Contudo, a maturidade precoce lhe trazia o vazio da solidão, e Ariovaldo passou a ficar incomodado com a idéia de sua natureza ermita lhe afastar do convívio com mundo . Foi quando, numa de suas raras idas até a cidade, conheceu Aparecida, filha de um vendedor errante que trazia estranhas bugigangas do Pernambuco. Mesmo que sua beleza fosse apenas discreta, a moça possuía uma docilidade natural e uns olhos negros e profundos que hipnotizaram por completo o fazendeiro. Trocaram alguns olhares e logo viraram cúmplices de uma paixão secreta e sem palavras. Ariovaldo passou a freqüentar a cidade todos os dias apenas para poder estar próximo de Aparecida, e vez que outra comprava com ela algum treco de parafusos e manivelas que não tinha idéia para que serviam, e pedia explicações só para poder ouvir a voz tímida mas decidida da jovem. No final das contas, o mercador voltou acompanhado apenas de suas bugigangas para Pernambuco, convencido que salvaria a filha do seu duro destino errante ao vê-la casada com o bom fazendeiro Ariovaldo.

Aparecida deu a luz a um menino na primavera do ano seguinte, que Ariovaldo batizou de Virgílio. A mulher e filho incutiram um sentimento novo, uma mistura de amor e compaixão, no coração endurecido daquele sertanejo sisudo que já havia presenciado a derrocada da própria estirpe. Formavam uma família feliz, que vivia satisfeita em apreciar os pequenos prazeres da simples vida sertaneja. Enquanto Aparecida ocupava suas horas com os cuidados ao pequeno rebento e na manutenção da casa em ordem, Ariovaldo se divertia acertando galhos secos e crânios de bode com o mosquetão do velho Virgílio, a ponto de tornar-se um hábil pistoleiro. Aplicava-se ainda ao trabalho com o gado, que milagrosamente multiplicou-se alheio a uma das maiores seca que o Ceará já havia presenciado, a qual deixou grande parte dos fazendeiros locais em profunda miséria. Certa feita o conhecido coronel Rubião, mais poderoso senhor das terras e dono da política em Quixadá, impaciente pelo fato de seu antes incontável gado estar minguando verticalmente frente as calamidades do clima, chegou a casa de Ariovaldo ralhando uma indecorosa proposta de negócio que apenas favoreceria ao próprio coronel, além da promessa de participação no poder público local. Ariovaldo recusou a proposta e Rubião, com a alma untada em ódio e maus pensamentos, jurou para si mesmo que não deixaria aquele frangote rabudo tomar o seu lugar como soberano na região.

Então, uma noite, enquanto dormia num vilarejo vizinho onde esporadicamente vendia gado, Ariovaldo acordou sobressaltado de um estranho pesadelo com um urubu que expelia fogo pela boca. Juntou suas coisas e partiu ligeiro no lombo do cavalo, até que, quando viu de longe as grandes chamas do Diabo consumindo lentamente sua propriedade, entendeu o mau presságio do sonho. A rês ou havia sido roubada ou se dispersado pelo sertão, e nenhum de seus funcionários agora mortos poderia contar a história. Ariovaldo não demorou para encontrar a mulher caída sem vida na varanda em frente a casa, com um tiro no peito e a genitália mutilada, ao lado do pequeno bebê cuja cabeça havia sido decaptada. O viúvo manteve seu aspecto exterior duro, não despejou uma lágrima e sequer deixou transparecer a dor da perda, mas internamente sentiu sua alma dilacerada. Era certo, havia sido então aliciado pelo Belzebu, e seu destino, desde sempre tão próximo ao da ceifeira maldita, estaria agora irrevogavelmente atrelado a necessidade por morte e a vingança.

A partir deste ocorrido, muito pouco se sabe sobre como os nebulosos anos se passaram para Ariovaldo, mas seu rastro de destruição e morte ficaram gravados na retina daqueles poucos que tiveram a má-sorte de sobrevier aos seus ataques. Começou com o brutal assassínio da família de Rubião, quando Ariovaldo conheceu na prática quão bom atirador havia se tornado, ao liquidar sozinho, munido de duas pistolas, todos os 14 jagunços que guardavam o patrimônio do coronel, para após matar com tiros certeiros os dois varões da família e estuprar a esposa, antes de cortar-lhe a garganta com a pecheira. Então, tomado pela raiva, Ariovaldo decepou os braços e pernas de Rubião, que teve de assistir entre uivos de dor ao dantesco teatro de sua penitência, culminando na queima da propriedade e a liberação do gado. Ariovaldo deixou de existir para o mundo como reles mortal ao estabelecer, na fazenda em chamas de Rubião, embebido pelo sangue das tripas de seu maior inimigo, um pacto eterno com o Diabo.

Nunca mais ele foi visto em Quixadá. Passou a ser conhecido como Ariri Pistola, e formou com outros seis homens de alma perdida um dos primeiros e mais temidos grupos de extermínio da história do cangaço. Seus requintes de crueldade só não tornaram-se mais notórios porque não deixava rastros, ninguém sobrevivia a empreitada. Queimava vilas inteiras, violentava as mulheres, decapitava as crianças e sua marca registrada era deixar alguns dos homens ansiando por uma morte célere, com os membros decepados e a genitália mutilada enfiada pela boca. O espólio dos saques era dividido pelo bando, enquanto Ariovaldo se preocupava apenas em dar continuidade a sua maldita sina da morte, acompanhado sempre pelo velho mosquetão do esquecido Virgílio. Reza a lenda que ele, no decorrer de sua passagem terrena, foi o responsável pelo assassinato de cinco mil infelizes por todo o Nordeste. Sobreviveu a dezenas de emboscadas, mas o mesmo destino não se sucedeu aos outros membros de seu grupo, que um a um foram capturados e tiveram a cabeça decapitada exposta como prêmio. Ariri Pistola, por sua vez, escapava como uma sombra errante sem deixar vestígios, ao passo que sua própria existência acabou sendo posta em dúvida, e ele passou a ser mais uma temida figura mitológica do imaginário popular do que um demônio real. Dizem que, já quase centenário, juntou-se incógnito ao grupo de cangaceiros de Lampião, onde sua alma trucidada pelo ódio pode manter um resquício de paz pelos tiros ainda certeiros da juventude. Então, certa vez desapareceu rasteiro para nunca mais ser visto por olhos humanos, apesar dos boatos de que continua até hoje morto em vida vagando pelas cidades que destruiu, atormentando as almas penadas.

6 comentários:

  1. Prestou um grande serviço à humanidade. Aqui no RS a expressão é usada mas ninguém sabe a origem.

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  2. Esta deve ser a undécima história do Ariri Pistola que chega ao meu conhecimento. Será que alguma é verídica?

    Pedro, RS

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  3. Dá para fazer um filme com as inúmeras versões do Ariri Pistola.

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  4. Ótima história amigo, muito obrigado por compartilhar. Aqui em RS usa se essa termo pra se referir a algo muito antigo.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Encontrei o texto por acaso pra matar a curiosidade sobre o nome que até então nunca tinha ouvido falar na minha vida. O jeito fabuloso de escrever a desventura me prendeu até o final. Me lembrou muito Gabriel Garcia Marquez. Parabéns pela excelente pequena obra. Um abraço.

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