sexta-feira, 15 de junho de 2012

A premonição final do cachorro Jacinto



Lá estava o cachorro Jacinto, voando então pelo grande oceano Pacífico, no seu velho avião dirigido por morsas, viajando para Lugar Nenhum na companhia de seus melhores amigos.

 O avião ia explodir, e ele sabia disso.

Iria ser como ele havia sonhado tantas e tantas vezes

Era o seu fim, mas ele sabia que estaria acompanhado de seus melhores camaradas no derradeiro momento. Sentia-se triste porque todos iam morrer, mas feliz por expirar seu tempo na Terra juntamente daqueles nobres companheiros a qual tanto estimava.

 Lá estavam aqueles seres especiais, aquelas criaturas que o cachorro Jacinto guardaria com carinho no âmago de sua memória, durante seus últimos instantes.

Ele sentia-se feliz da presença de Faristeu Bueno, o espontâneo guepardo com o qual jogava xadrez e compartilhava dos bons chás da terra. (Ele não sabia o que estava por vir).

O cachorro Jacinto ficava tranquilo pela presença de Leopoldo Hartz de Melo, o honesto porco debulhador de abacates do Mar Yaga, que sempre lhe encorajou nas reflexões crematórias quando tudo o mais parecia perdido. (Ele não sabia o que estava por vir)

 Lá também estava o taciturno Verme Fenrir, aquela confusa presença nematelmintica, que sempre lhe falava do apocalipse e de esperança num dialeto estranho.

Porque será que o Verme Fenrir estaria lá? (Saberia ele, o que estava por vir?)

E com certeza absoluta, a presença mais importante era a do grande amor de sua vida, Brenda Gertrudes de Barros Yacuan, doce e gelatinosa donzela canina dos Vulcões Glorck, com seus grandes olhos de bergamota, a dama com a qual o cachorro Jacinto havia dividido os melhores e mais tumultuados anos de sua vida.  (Ela não sabia o que estava por vir)

Todos iam morrer, explodir. Desapareceriam com o cachorro Jacinto em breve

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E quando surgiu o momento mágico, pouco antes do avião ser atingido pelo míssil pós-soviético e explodir pelos ares, o cachorro Jacinto exclamou:

- Dividam as batatas! Por favor, apenas dividam as batatas!

E os céus ficaram cheios de escuridão, o tempo parou derradeiramente e o Verme Fenrir proferiu:

-DRUSJNA! PARINK DEVNA FIELSA!

Após a explosão, nada mais aconteceu.


sábado, 9 de junho de 2012

O paradoxo da Libéria: quando os escravos se tornam os escravizadores



Charles Taylor, um corrupto ditador assassino, traficante de armas, estuprador e escravizador, foi presidente da Libéria. Recentemente, tornou-se também o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional. Mas o cerne desta matéria não será o cruel Charles Taylor, mas sim seu pobre e explorado país, a Libéria, mais um dos miseráveis países africanos que muita gente nem sabe que existe. Porém, a Libéria conta com uma história peculiar em sua colonização, realizada no século 19 por escravos libertos dos Estados Unidos, que foram enviados por seus antigos patrões de volta ao continente de origem dos seus ancestrais. Mas não vou me estender mais, e se você quer saber mais sobre a Liberia, leia a matéria abaixo.



Os diamantes de sangue de Charles Taylor, ou a Libéria na mídia internacional

O Tribunal Especial de Serra Leoa condenou em maio o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, por fornecer armas aos rebeldes de Serra Leoa em troca de diamantes, e por ter se tornado cúmplice de crimes de guerra e contra a humanidade, cometidos durante a guerra civil no país africano, entre 1991 e 2003. Com 64 anos, Taylor, foi o primeiro ex-chefe de Estado condenado por um tribunal internacional, e colocou a Libéria nos holofortes da mídia mundial.
Charles Taylor assumiu o poder na Libéria no Natal de 1989, após torturar, mutilar e assassinar o seu antigo aliado, Samuel Doe, então presidente do país. A tortura foi filmada e mostrada em noticiários em todo o mundo. O vídeo mostra Johnson bebendo uma Budweiser enquanto corta a orelha de Doe.
Por parte da Serra Leoa (país vizinho da Libéria), são muitas as denúncias contra o ex-ditador, que vão de assassinatos, estupros de meninas e mulheres ao recrutamento de crianças-soldado, que também eram tratados como escravos para extrair diamantes. "Muitas mutilações e violações a mulheres eram cometidas em público, e houve até pessoas queimadas vivas em suas casas", ressaltou o juiz responsável pelo caso, Richard Lussick, como exemplos das atrocidades cometidas em Serra Leoa. O conflito civil que assolou Serra Leoa entre 1991 e 2002 gerou mais de 100 mil vítimas, entre elas uma multidão de mutilados e 50 mil mortos. Mas essa matéria não irá falar da mutilada Serra Leoa (embora a realidade do pobre país mereça ser melhor conhecida).


Os escravos estão livres, mas como nos livrar deles? Vamos mandá-los para a África!

A Libéria é mais um pais miserável da África Ocidental. Foi fundada por seis mil negros norte-americanos, trazidos para a África em 1821 por ação da Sociedade Americana de Colonização (ACS, na sigla em inglês). Tratavam-se de negros que tinham sido libertos da escravatura, e que ganharam a área de presente de seus antigos patrões para que assim pudessem viver na terra de seus ancestrais. Os brancos não faziam isso por caridade, mas sim para expulsar dos EUA os negros recém-libertos da escravidão, já que estes (por “seus instintos selvagens”) não conseguiriam se adequar a uma sociedade livre norte-americana. O regresso à África seria uma solução para evitar certos "perigos" imaginados como resultado da presença negra, como o casamento interracial ou a criminalidade.
Guiados pela Sociedade Americana de Colonização, os primeiros escravos libertos aportaram na costa da Monróvia (hoje capital do país) onde fixaram sua colônia. Deram o nome de Libéria (“Terra Livre”, em latim) ao seu novo lar. A princípio, a administração do novo país foi entregue a representantes escolhidos pela própria ACS. Mas, com o crescimento populacional e o progressivo alargamento do território, começaram a surgir lideranças locais entre os ex-escravos.
Na expectativa de aumentar as áreas cultiváveis, os antigos escravos norte americanos passaram a adquirir mais terras e avançar suas fazendas além das fronteiras originais. Em 26 de Julho de 1847, a Libéria declarou a sua independência, sendo o primeiro país da África a se tornar independente, embora permanecesse estritamente atrelada aos Estados Unidos. Mais 13 mil escravos libertos dos EUA chegam à Libéria, após a Guerra Civil americana (1861-1865) e o fim definitivo da escravidão. 



Joseph Jenkins Roberts: De escravo nos EUA à presidente na Libéria


Os escravos que viraram escravizadores

Não foi surpresa para ninguém quando surgiram as primeiras desavenças com as tribos locais, que ainda por cima foram excluídas da cidadania no país. As fronteiras - traçadas inicialmente pela ACS e expandidas pelos negros americanos - dividiram etnias aliadas e reuniram no mesmo território cerca de 15 tribos, algumas delas inimigas há séculos. Os conflitos internos eram inevitáveis.
As áreas litorâneas, colonizadas pelos negros americanos, prosperavam com o auxílio dos Estados Unidos. Plantações de mandioca e café e a extração de borracha cresciam pela costa. Enquanto isso, o interior habitado pelos nativos africanos era totalmente negligenciado, com a população vivendo em miséria.
 Diante deste fato, um paradoxo curioso e triste ocorreu na chamada “Terra Livre” da África. Com fome, as tribos nativas submeteram-se a trabalhar nas fazendas da elite negra norte-americana, em troca de comida para suas famílias. Os nativos eram ridicularizados, açoitados e menosprezados pelos patrões. Com o poder em suas mãos, os ex-escravos passaram a ser os escravizadores. Pois este, afinal, era o único modelo social que os negros norte-americanos conheciam. Haviam nascido na escravidão, seus pais e avós haviam nascido escravos, então era quase natural que, agora libertos, adotassem o sistema em suas vidas. Não era possível a eles vislumbrar um mundo onde todos vivessem em liberdade.


Preconceito e repressão: os negros que não queriam ser negros

Em pouco tempo os “refinados” negros da Libéria organizaram uma sociedade a parte dos “selvagens” negros nativos. Criaram uma constituição e um modelo político semelhante aos dos EUA, definiram a religião Batista como oficial e se declararam os únicos cidadãos por direito. Como não podiam se diferenciar da população local pela cor de pele, mostravam sua “superioridade” vestindo-se com a pompa e requinte de seus senhores brancos na América, utilizando fraques, luvas e chapéus, mesmo nos dias de calor escaldante. As roupas eram ridículas comparadas com o contexto africano, viviam empapadas de suor, fedidas, mas os liberianos utilizavam perfumes e colônias em excesso para amenizar o odor.
Em 1869, os américo-liberianos instituíram um sistema do partido único, o True Whig Party, que ficaria no poder por um total de 111 anos, excluindo do poder público os nativos. Foram demarcados territórios para isolar as 16 tribos locais do convívio dos negros da América, e quando estas ultrapassavam seus limites eram severamente punidas pela bem organizada e armada polícia da Monrávia, cujos armamentos eram patrocinados pelos EUA. Quando estourava alguma rebelião, esta mesma polícia era enviada para realizar expedições punitivas com o objetivo de capturar escravos.


Uma das tribos locais da Libéria: nativos não eram considerados cidadão pelos colonos negros norte-americanos



Libéria hoje: abandono, guerra, corrupção e miséria

Por grande parte do século 20, a classe política dominante na Libéria continuou formada pelos descendentes dos ex-escravos norte-americanos, com seu True Whig Party. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, os EUA frearam os investimentos no país da costa oeste africana, deixando a elite liberiana entregue a própria sorte, o que na África significa - quase invariavelmente - uma brecha para guerras civis. O calculo é simples: são dezenas de tribos rivais agrupadas num mesmo pais, tendo que buscar a paz incompreensível. Porém, são tribos que, historicamente, guerreiam já há milhares de anos entre si, o ódio entre etnias rivais é inato e quase indiscutível em muitas sociedades africanas. Isso já seria o suficiente para gerar grandes ondas de estabilidade, mas se torna o caos com a presença de uma minoria negra, estrangeira dominando o país.
Porém, o partido dos colonos negros dos EUA conseguiu, por meio da ditadura e exploração, se manter por um longo tempo no poder. Apenas em 1980 um golpe militar, liderado por Samuel Doe, membro de uma etnia local, tira o True Whig Party do poder. E em 1989, acontece o inevitável: várias etnias lutam pelo poder em uma guerra civil sangrenta, que durou até 2003 matando centenas de milhares de liberianos.
Hoje, Os habitantes da Libéria sofrem com vários problemas socioeconômicos. O desemprego atinge grande parte da população; a fome e a desnutrição castigam os habitantes. A cada mil nascidos na Libéria, 93 morrem antes de completar um ano de idade; a maioria dos habitantes vive com menos de 1,25 dólar  por dia, ou seja, abaixo da linha de pobreza. O país tem um dos IDH mais baixos do mundo, e a expectativa de vida é de menos de 47 anos.
Em seu relatório anual de 2010, a organização não-governamental Transparência Internacional (TI) identificou a Libéria como a nação mais corrupta do mundo. O maior dado verificável de corrupção, de acordo com a entidade, são os serviços públicos. Verificou-se que, ao procurar a atenção de um prestador de serviços públicos, aproximadamente 89 % da população do país tinha de pagar alguma forma de suborno.



Mais História: Os escravos brasileiros que voltaram para a África e prosperaram



A viagem de volta para a África também foi feita por ex-escravos brasileiros, no século 19. A expatriação começou após Revolta dos Malês, que ocorreu na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, na cidade de Salvador


- Na Revolta dos Malês, organizada em torno de propostas radicais (e praticamente suicidas), os negros pediam a libertação dos escravos africanos que fossem muçulmanos na Bahia. "Malê" é o termo que se utilizava para referir-se aos escravos muçulmanos. A rebelião foi rápida e duramente reprimida pelo poder público e militar baiano. Cerca de 70 pessoas morreram e mais de 500 foram punidas com deportações para a África.

- Após a Revolta dos Malês, o governo baiano ficou assustado com o poder de organização dos ex-escravos, e criou uma lei que permitia “reexportar africanos libertos sob simples suspeita de promover, de algum modo, a insurreição de escravos”. O governo também dificultava a vida destes ex-escravos, que foram proibidos de alugar imóveis e tiveram seus títulos de propriedade anulados.

- Quase compulsoriamente, entre 5 e 8 mil pessoas voltaram da Bahia para a África nos anos posteriores, principalmente aos países do Benim e Nigéria. A chegada dos brasileiros provocou muitas mudanças. Para começar, os imigrantes constituíram uma elite de comerciantes e artesãos, atividades que exerciam no Brasil. Muitos enriqueceram com seus ofícios, e ainda revolucionaram os hábitos locais. As casas, quase todas térreas e sem janelas, foram substituídas pelos sobrados com dois ou três andares, típicos do estilo colonial brasileiro.

- As moradias também ganharam móveis, como sofás, camas, mesas e cadeiras de balanço, desconhecidos dos africanos da época. As visitas eram recebidas com sucos de frutas colhidas no pomar, coisa que eles também nunca tinham visto. A vida cultural também mudou muito. A comunidade brasileira passou a organizar serões musicais e peças teatrais. Os africanos também foram apresentados às festas brasileiras, como a Epifania e o Carnaval. Mesmo a culinária, sofreu grandes transformações. Pratos típicos da Bahia no século 19, como o mingau e o pirão de caranguejo, foram perfeitamente inseridos na cozinha local.


*com informações dos sites Wikipedia, Terra, Guia do Estudante (abril) e do livro “Ébano – minha vida na África”, de Ryszard Kapuściński