terça-feira, 29 de setembro de 2009

A caldeira



Não raro, ruídos estranhos emanam do mal iluminado e eternamente úmido deposito, principalmente nas noites de forte tormenta do inverno porto-alegrense.

Provavelmente trata-se de algum trabalho tardio da velha caldeira elétrica que ali se posta, no porão onde hoje repousam entulhos e restos de uma mobília apodrecida.

Algumas das funções do referido utensílio, que antes fornecia o aquecimento central aos cômodos, continuam vivas, espalhando-se pela enferrujada tubulação conjunta da casa.

O curioso é que, desde tempos a muito esquecidos, a caldeira está desligada.

Acho que ninguém jamais se prestou a investigar como isso ocorre ao certo.

Como um objeto, comprovadamente inoperante, adquire caráter ativo sem ação manual?

Também sei que jamais se prestaram a investigar porque tantos ratos aparecem misteriosamente mortos no mesmo porão.

Enfim, esta ação espontânea, advinda da caldeira, faz com que os vários lugares onde existem entradas de ar sejam, ocasionalmente, acometidos por uma cacofonia inesperada, semelhantes ao de uma grande máquina à trabalhar.

A casa vive, digamos assim.

E é justamente em meu quarto que estes sons tornam-se mais nítidos, certamente por sua localização estratégica logo abaixo do depósito.

Sinto que, em certas ocasiões, os sons que saem da máquina assumem clara articulação fonética, inclusive por vezes repetida, onde uma mensagem oculta é sibilada por uma entidade existente na mansão, porém sem um aspecto corpóreo definido.

A casa fala, digamos assim.

Já tentei, em, vão compreender a mensagem, mas afinal a especulada linguagem não cria imagens sonoras inteligíveis ao meu cérebro.

Certas vezes penso estar louco.

Creio que tais situações devem ser apenas criações de minha mente, acometida ao certo pelos delírios da solidão freqüentemente presentes no mausoléu agonizante.

Mas suponhamos que, e claro que isto não pode ser nada além de especulação, realmente existam certas vozes.

Suponhamos que elas venham daqueles muitos seres moribundos cujos corações cessaram na gigante catacumba.

Na casa onde alicerces ganham vida a partir de um maquinário irrefutavelmente morto.

Não seriam as almas perturbadas o alimento preciso para a fome da voraz caldeira?

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