quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Nossas ruas são feitas de PEDRA(parte 6)

Um tratamento paliativo


Hospital Psiquiátrico São Pedro

Elizabeth Azevedo é a chefe do Serviço de Admissão e Triagem do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ela já não se surpreende mais quando um viciado em pedra, passando por um severo surto psicótico e claramente fora do seu estado mental adequado, chega ao SAT em busca de ajuda, mas acaba sendo despachado de volta para seu município de origem. “A verdade é que temos a disposição apenas 20 leitos para dependentes químicos, um número que é completamente incoerente com a realidade que vivemos. Não temos estrutura física nem de pessoal para acolher a grande demanda que o crack tem criado. Muitas vezes, os pacientes são tantos que tem que passar as noites dormindo nos bancos do hospital para esperar uma avaliação”.

A espera por um leito leva de duas a três semanas. Quando o paciente consegue ser admitido no São Pedro, passa para a Unidade de Desintoxicação (UD) para receber o tratamento adequado. “A verdade é que o tratamento é apenas paliativo, serve mesmo para fazer uma limpeza no organismo do viciado. É ingenuidade pensar que o usuário sai daqui curado, pois vencer uma dependência como a do crack é algo que está mais na força de vontade do usuário do que num tratamento clínico”. Elizabeth informa que, há cerca de cinco anos, eram raros os casos de dependentes pela pedra, mas que desde o ano passado a presença da droga cresceu tanto a ponto de se tornar o principal motivo de internação. “A verdade é que a sociedade ainda não está preparada para o problema do crack. Os hospitais não tem a estrutura adequada para receber os usuários, e a falta de leitos e pessoal acaba fazendo com que muitos casos críticos não tenham o acompanhamento necessário. Enquanto isso, a droga vai se espalhando por todos os cantos”.

“Só quero que isso acabe, meu Deus”


A família pediu para que não o identificassem, e garanti o sigilo de Fernando, nome fictício. Mora em Novo Hamburgo e faz parte de uma família de classe média, tradicional no município. Tem 42 anos, se casou, teve filhos e um emprego estável no serviço público. Porém nunca conseguiu se livrar do vício em cocaína, que carregava desde os tempos de juventude. Quando a situação se tornou insustentável e a mulher o abandonou, levando consigo os dois filhos, Fernando caiu em depressão. Perdeu emprego e casa, se entregou de vez ao pó. Quando os irmãos decidiram interná-lo em uma clínica para dependentes, Fernando pegou o carro e sumiu. Só foi aparecer novamente um mês depois, fazendo ameaças em frente a casa da ex-mulher. Quando a polícia o prendeu, trazia consigo um cachimbo e pequena quantidade de crack.

Encostado em uma cadeira na triagem do São Pedro, Fernando está inquieto, olha para todos os lados nervoso. Faço-lhe algumas perguntas mas ele não esconde o rosto e evita responder. “Só quero que isso acabe, meu Deus, Só quero que isso acabe”, repetia com freqüência. Os irmãos que lhe acompanham dizem que ele já esteve internado outras duas vezes por causa da cocaína, mas a descoberta do crack foi uma grande surpresa. “É aquela velha história. A ficha só cai quando acontece com alguém próximo. É triste ver uma pessoa que já teve tudo chegar a este estado lamentável”. Agora, eles esperam por um leito para o irmão e tem esperança em ver Fernando limpo novamente, mas sabem que o caminho é longo. “Vamos ter que cuidar dele como se fosse uma criança, e ter fé que ele volte a ser o que era antes”, finalizaram.

Uma reforma pela incoerência


Em todas as 3 unidades de tratamento contra drogas do Hospital Psiquiátrico São Pedro, o crack é de longe a com maior prevalência. Das mais de 600 pessoas que recorrem por mês à emergência psiquiátrica, metade se encontra sob o domínio da droga. E uma epidemia não poupa ninguém, nem crianças que, ao invés de estarem brincando de carrinho e boneca, vendem sua inocência para bancar a pedra. Quem confirma é o diretor técnico do HPSP, psiquiatra Gilberto Broffman “O crack ganhou uma dimensão galopante. Alguns anos atrás, quase não haviam crianças dependentes, e hoje temos muitos leitos ocupados por usuários entre 6 e 12 anos, o que é apavorante. Entre os adolescentes, 90% dos dependentes químicos são usuários de crack, e a cifra é a mesma nos adultos. Onde antes havia uma presença também de outras drogas, como o álcool, hoje a pedra predomina maciçamente”. Broffman indica que, apesar de haver um princípio de dependência em crack nas classes mais altas, como vem sendo divulgado pela imprensa, este número ainda é muito distante do que se observa na realidade das ruas e periferias.

O psiquiatra lembra do potencial destrutivo da pedra, que além da dependência química elevada ataca outros órgãos do viciado. “O vício é indissociável ao consumo e então não existe uso recreativo desta droga. O crack é o entorpecente mais devastadora que existe para o ser humano, debilitando todo organismo. Além do cérebro ela ataca profundamente o pulmão, portanto é comum encontrar um usuário com doenças respiratórias como tuberculose e pneumonia. Também eleva severamente a pressão, principalmente quando associado ao consumo de bebida alcoólica, ao ponto de causar infarto ou acidente vascular cerebral (AVC). Qualquer pessoa que tenha alguma outra patologia fica exposta ao risco de vida eminente quando consome esta droga”.

Broffman lamenta o fato de, nos dias de hoje, ainda não existir uma droga eficiente para combater o vício no crack, que ele considera ser muito mais um problema social do que médico. “Crianças que estão expostas a uma realidade muito próxima da droga e criminalidade nas periferias acabam sendo tentadas pela pedra, que surge como uma alternativa para fugir, mesmo que momentaneamente, do contexto de miséria e dificuldades com o qual convivem”. Sobre o problema da falta de estrutura física, o diretor do São Pedro destaca que o Rio Grande do Sul tem hoje menos de 40% dos leitos que possuía há 10 anos atrás, um problema que encontra suas raízes na lei de reforma psiquiátrica, que se propunha a mudar a ideologia de assistência psiquiátrica no Brasil.

Segundo afirma Secretaria de Saúde do RS, a Organização Mundial da Saúde defende que o dependente químico seja tratado em alas clínicas de hospitais gerais, em detrimento aos leitos psiquiátricos. A filosofia segue o espírito da lei antimanicomial implantada em 1992 no Estado, cuja ideologia é evitar a segregação e melhorar o atendimento. “Porém esta reforma teve alguns erros graves, pois ela determinou que fossem fechados leitos em hospitais psiquiátricos, o que vai à contramão da epidemia do crack. Isto é baseado numa ideologia equivocada, que entendia a doença mental como um fenômeno sociológico, e não como uma doença”. E sem a disponibilidade de leitos para afastar as pedras do caminho dos filhos, para muitos pais o que resta é amarrá-los ao pé da cama.

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