quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Nossas ruas são feitas de PEDRA (final)


ENTREVISTA: RAPPER DOGG

“O grande traficante é o político no carro importado”

Luís Daniel de Oliveira nasceu na periferia de Alvorada, e viveu boa parte da vida na cotidiana miséria das favelas. Sua escola foi a das ruas. Começou cedo no crime, se envolveu no tráfico de drogas, foi preso por diversas vezes e acabou viciado em crack. Na pedra, sentia prazer pela proximidade com a morte. Porém, a partir de uma inabalável fé e da força de vontade, Luís Daniel começou a traçar um novo caminho. Tornou-se Rapper Dogg, e passou a usar o rap e o cinema para divulgar uma visão do mundo vivida por muitos, mas conhecida por poucos: a dos excluídos. Lançou dois documentários sobre as mazelas do crack na sociedade, “Vítimas do Crack” e “A Maldição da Pedra”, este último premiado no Festival de Cinema de Gramado em 2008.


Primeiramente, gostaria que você falasse um pouco sobre a sua história antes de se tornar documentarista e rapper.

A minha infância toda foi dentro do crime e com a droga muito presente. Comecei no cigarro, depois maconha, álcool e assim foi progredindo para drogas mais pesadas. Não ficava na escola, tinha muitas evasões, minha vida toda foi nas ruas mesmo. Como sempre faltava dinheiro para tudo, comecei com o crime: roubava motos, supermercados, lojas. Parte do dinheiro era pra comprar minhas coisas e a outra ia para o uso de drogas. Me envolvi com um pessoal que fazia “Conexão Paraguaia”, roubava carros importados que eram vendidos no Paraguai . Muito novo eu conheci a FEBEM, por onde passei diversas vezes. Quando atingi a maioridade só mudou o endereço, fui preso várias vezes e na cadeia conheci a verdadeira escola do crime. Comecei a traficar crack dentro do Presídio Central mesmo, que era o jeito que tinha para sustentar minha família. A droga vinha para mim via semi-aberto e era passada para o pessoal de dentro.

Qual eram os efeitos que tu sentia quando consumia o crack?

Primeiro uma sensação de poder muito grande e uma felicidade momentânea, tu fica elétrico, perde a fome. Depois começa o lado ruim, tu fica deprimido por estar usando uma coisa que te destrói por dentro, desestrutura a família. O crack remete a muitas coisas do passado, faz voltar lembranças que tu quer esquecer mas não consegue. Cada vez que o tu dá uma cachimbada acaba pensando em coisas negativas, tem visões, fica paranóico achando que alguém quer pegar te pagar. Tu vê muitos vultos de almas que ainda não descansaram, gente que nem existe mais. A pedra te associa ao mal que existe no mundo, tu perde a luz espiritual e a vontade de viver. A idéia de morrer é a que mais te agrada.

O que o fez largar o vício da pedra e se transformar num lutador das causas pelos direitos humanos dos marginalizados?

Eu me apeguei muito em Deus, pois no momento que tu tem uma fé, algo no que acreditar, tu te apega nesta fé e se fortalece contra todos os males. Também o apoio da família é fundamental, uma esperança que te fortaleça. No meu caso, a vontade de ver meus filhos crescendo num mundo melhor, em que não tenham que presenciar o horror que eu presenciei, me fez parar com o crack. Mas essa vontade de parar tem que partir do próprio viciado, senão não adianta nada. Hoje estou livre de todas as drogas, pois entendi o quanto o vício me prejudicava. O cinema e o rap se tornaram as minhas ferramentas para denunciar essa maldição que o crack se tornou, além das injustiças sociais que acontecem todos os dias dentro da favela e muitos não vêem que muitos não vêem.


Como a pedra se espalhou no sistema prisional gaúcho?

A pedra é antiga nos presídios, eu já vendia desde 97, e hoje já está completamente proliferada no sistema. Estas guerras dentro das comunidades, “tomaçadas” de boca e tudo mais, começaram com o crack dentro da cadeia e se espalharam para a favela. Muitas destas rebeliões que se vê na TV são por causa da pedra. As prisões estão sucateadas e repletas de viciados que fazem de tudo pelo crack, mas a sociedade sempre fechou os olhos.

O que seduz tanto os jovens, principalmente os mais pobres, a entrarem no mundo das drogas e, consequentemente, do crack?

O filho que não tem o pai presente, a própria curiosidade para saber qual a sensação de estar chapado. Não há mais conversa, o diálogo familiar está muito pobre, principalmente na periferia onde falta maior informação. Nas favelas também tem a questão da desigualdade social, jovens que não tem nada e que viraram lixo perante os olhos da sociedade. Ai essa pessoa, que convive o tempo todo com a droga, acaba entrando nesse submundo, perde o amor pela vida e cai de vez na pedra. E o pior é que isso está começando cada vez mais cedo. Hoje tu vê muita criança de 10 anos que já foi vitimada pelo crack. Por isso deve-se trabalhar forte nas escolas com a questão da prevenção, para que os jovens tenham noção do poder destrutivo da pedra.

Como é a presença do crack nas favelas?

A presença do crack é muito forte nas favelas. Ele já esta sendo elaborado dentro da periferia, com laboratórios caseiros no quintal de casa refinando as pedras. Quem vende crack não tem noção do mal que está fazendo, pois eles estão destruindo o seu próprio povo. O viciado faz qualquer coisa para ter a droga, começa a roubar dentro de casa, depois na favela, acaba se tornando um problema dentro da sua própria comunidade. O crack destrói até o funcionamento da favela.

Que drogas mais dão lucros para o tráfico?

O crack é a droga que mais vende, junto com a cocaína. A maconha rende pouco em relação a estas. Só que o crack é uma droga urbana, pois o usuário vive nas ruas, portanto próximo de toda agitação. Por isso é tão fácil comprar a pedra, os próprios viciados acabam se tornando vapores, vendendo cinco papelotes para depois poderem fumar um. A boca só faz a distribuição mesmo. E a pedra, como tá sendo feita dentro das próprias favelas, acaba rendendo mais pelas mãos dos traficantes.

Qual a potência do crack gaúcho?

O crack no Rio Grande do Sul é um dos mais fortes que existe, pois ele é pura mistura. Aqui o traficante, na hora do refino da pedra, adiciona bicarbonato e outros produtos que façam com que a droga renda mais. Dizem que o merla (subproduto da cocaína tão nocivo quanto o crack, e que contém ácido sulfúrico em sua composição) chegou ao nosso estado, mas isso é mentira, o que nós temos é um crack mais poderoso que os outros. Esse excesso de mistura faz com que a droga tenha um efeito menor, o que leva o usuário a consumi-la cada vez mais. O tráfico de crack não tem escrúpulos, só quer saber de ganhar mais dinheiro, alguns até misturam com a maconha pra tentar criar novos viciados.

A pedra chegou aos moradores de rua ou levou gente que antes tinha casa direto para a sarjeta?

O que acontece é que com o crack a pessoa perde tudo, inclusive o respeito da família e da comunidade. É por isso muitos usuários acabam sendo expulsos e indo para as ruas, onde eles se entregam a pedra, que se torna a única coisa que mantém a vontade de viver. A rua se torna um refugio onde eles se identificam com outros viciados que estão na mesma situação. Ai vêm outro problema, pois este usuários começam a manter relações sexuais entre si, muitas vezes sem o uso de preservativos, espalhando outras doenças.


Na sua opinião, o tratamento contra o crack é efetivo?

O tratamento é importante para fazer uma desintoxicação no usuário, que geralmente chega podre nas clínicas. O crack destrói não só a cabeça mas todo o organismo, e o tratamento serve para deixar o viciado limpo. Mas não vai ser uma clínica que vai tirar a pessoa da dependência na pedra, para conseguir se livrar mesmo do vício tem que ter muita força de vontade.

De que maneira as distorções sociais influenciam na proliferação da pedra?

Todo mundo está preocupado com a proliferação do crack, mas ninguém olha para as guerras que ocorrem diariamente dentro das favelas. Muitos pessoas inocentes e viciados estão morrendo pela pedra, seja por causa do vício ou pela violência. O problema é que as distorções sociais são tão grandes que muita gente acaba não vendo o que está acontecendo. Muita gente humilde não está preparada para o mercado de trabalho competitivo dos dias de hoje, porém todos precisam de dinheiro para sobreviver. A sociedade exige que tu se adeqüe a um certo padrão, o negro pobre da favela tem que transparecer uma imagem que não é sua realidade para ser aceito. Então alguém decidi abrir uma boca, que se torna uma oportunidade de crescimento. Só que o crack é um mercado em que o maior reprime o menor, é a lei do mais forte onde a boca que tem menos poder é invadida e seus chefes mortos pelo peixe grande. Uma disputa de negócios onde o monopólio predomina e a concorrência é passada pra traz.

Você considera exagerada a repressão policial contra viciados em pedra?

A repressão da polícia é necessária, mas não dessa forma tão física como a gente vê, até porque o viciado não vai largar a droga por causa de uma surra. A pessoa para entrar no crack já perdeu o amor pela vida, nem liga se vai apanhar ou ser preso, só quer a companhia da pedra. Além do mais, a cadeia está repleta de viciados, o tráfico ocorre livremente lá dentro e parece que ninguém vê nada. A pedra está se espalhando por todos os cantos, e não é a polícia que vai frear este avanço.

O governo está sendo omisso na luta contra a pedra?

Por muito tempo o governo fechou os olhos para a proliferação do crack, pois era um problema das favelas, e para a política pouco importa o que acontece nas favelas. O governo prefere investir em bancos e empresas que garantam um retorno financeiro, esquecendo do pobre, que para eles não tem futuro. Só que, pela falta de controle, essa droga se espalhou também para outras classes sociais, daí a situação ficou diferente. Caiu na mídia e o governo agora tem que tomar providências. Já faz tempo que mães matam seus filhos viciados em pedra dentro da periferia, só que isso não aparece, ninguém fica sabendo. A favela é esquecida de todos.

Que medidas poderiam ser adotadas para tentar frear o avanço do crack?

Os governos tem que se conscientizar e fazer os investimentos sociais direto na raiz do problema, melhorando educação, cultura e moradia nas favelas, criando empregos e oportunidades para que os que hoje são mais pobres se sintam incluídos e aceitos pela sociedade. O crack, assim como o crime e a prostituição, é um problema social que se espalha pela desigualdade. O jovem da favela muitas vezes não tem esta visão, mas ele é uma vítima de um sistema, onde o grande traficante não é o cara que tá na favela comercializando a droga, mas sim aquele político que passa com um carro importado, fecha o vidro e ignora aquilo que está na sua frente.

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