quarta-feira, 22 de julho de 2009

A bruma da morte nas paredes que choram


A jovem Raquel veio direto da Borrusia, pacato reduto colonial na verdejante serra que margeia o litoral norte gaúcho. Chegou a Porto Alegre acompanhada da mãe de criação, Jussara, e ficou estupefata ao ver do carro em movimento a exuberância e a grandiosidade dos prédios da metrópole. Porém sua primeira visita a capital não tinha qualquer objetivo turístico, portanto tratou de gravar na memória o máximo possível das singulares situações e primorosos lugares onde passava.

Raquel desembarcou na mansão, e novamente se impressionou com o tamanho do lugar e a antigüidade da mobília. Encantou-se com o estúdio e com aparelhos musicais que nunca tinha visto em sua pequena colônia. Ficou sabendo dos enigmáticos quadros e espelhos que ocultavam painéis e cofres pelos cômodos. Só lhe escondi que a velha casa serviu como local do último suspiro para tantas almas.

A maquiavélica bisavó, que sofria com o fígado dilacerado pela bebida, foi a primeira, e morreu engasgada em tufos de seu próprio sangue. Depois a tia-avó viajante, que veio de Brasília fazer uma rápida visita e acabou de quatro ao lado da cama, fulminada por um ataque cardíaco e envolta em fezes e vômito, como constatei. Por último a resistente avó, que sobreviveu muito mais que sua debilitada saúde prognosticava e se foi num sono tranqüilo, finalizando a dor infligida pelas putrefatas escarras que lhe cobriam as costas e pernas inúteis.

Contudo não havia qualquer necessidade em Elita saber tais particularidades daquele surreal mausoléu. Afinal, o propósito de sua estada em Porto Alegre era exatamente cirurgia para retirada do útero e ovários, consumidos pelo câncer. Seria muita insensibilidade traumatizar a pobre moça no momento mais delicado e decisivo de sua curta vida. Mas a verdade é que uma quase imperceptível bruma de morte parecia brotar das paredes em pedra-sabão do largo corredor superior, que chorava nos dias de chuva forte.

Caiu o mundo na noite da cirurgia, e algumas insistentes goteiras brotaram em meu quarto. Uma delas vinha da portinhola que dava para o porão, e pingava rítmica e incessantemente. Outra surgiu misteriosamente do lustre central, e vez que outra descarregava uma considerável quantidade d’água como se houvessem aberto uma torneira. Faltaram baldes e bacias. Arrastei a cama para longe das goteiras e tentei dormir em meio a uma babilônia gotejante . Algum tempo passou, e o barulho dos pingos crescia com o silêncio. Um cheiro de mofo se dissipava pelo ar. Os olhos fechados, mas a mente presa ao lunático compasso da água fluindo pelo teto, cujo volume parecia aumentar...

Então, uma verdadeira cascata despencou pelo lustre. Abri os olhos sobressaltado para verificar, mas não prendi atenção nem ao lustre nem ao cheiro fétido de algo apodrecendo. A porta antes trancada do quarto estava aberta, e o vulto espectral de uma criança via-se parada defronte. Um silvo agudo penetrou em minha mente, a cabeça doía, tentei gritar mas, não consegui. O vulto se movia lentamente....

Acordei com o grito que buscava no sonho. O som agudo se dissipou, sobrando apenas a caótica sinfonia das goteiras. Pela manhã, ainda perturbado pela noite de sono maldormida, Jussara me liga, aos prantos, constatando a morte de Raquel, que não resistiu a rejeição de um remédio após a complicada cirurgia. Enquanto as paredes do corredor choravam como nunca.

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