quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Cada um pertence a todos


Num pequeno espaço gramado entre altas moitas de urzes mediterrânea5- duas crianças, um garoto de cerca de sete anos e urna menina que poderia ter um ano a mais, dedicavam-se muito gravemente, com toda a atenção concentrada de sábios absortos em algum trabalho de descoberta, a urn jogo sexual rudimentar.

— Lembram-se todos — disse o Administrador, com sua voz forte e profunda —
lembram-se todos, suponho, daquelas belas e inspiradas palavras de Nosso Ford: "A História é uma farsa". A História — repetiu pausadamente — é uma farsa.

Mustafá Mond inclinou-se para a frente, brandiu diante deles seu dedo indicador:
— Procurem compreender — disse, e sua voz causou-lhes um frêmito estranho na região do diafragma. —Procurem compreender o que significava ter uma mãe vivípara.

Novamente aquela palavra obscena. Mas dessa vez, nenhum deles pensou em sorrir.

— Procurem imaginar o que significava "viver no seio da família".
Eles tentaram imaginar; mas, evidentemente, sem nenhum êxito.

— E sabem o que era um "lar"? Abanaram a cabeça.

O lar, a casa — algumas peças exíguas, onde se apinhavam, de maneira sufocante, um homem, uma mulher periodicamente prolífica, um bando de meninos e meninas de todas as idades. Falta de ar, falta de espaço; uma prisão insuficientemente esterilizada; a obscuridade, a doença, os cheiros.

(A evocação feita pelo Administrador era tão vivida, que um dos rapazes, mais sensível que os outros, só com a descrição empalideceu e esteve a ponto de vomitar.)

E o lar era tão sórdido psiquicamente quanto fisicamente. Do ponto de vista psíquico, era uma toca de coelhos, um monturo, aquecido pelos atritos da vida que nele se comprimia. Que intimidades sufocantes, que relacionamento perigoso, insensato, obsceno, entre os membros do grupo familiar! Insanamente, a mãe cuidava de seus filhos(seus filhos). . . cuidava deles como uma gata cuida de seus filhotes. . . mas como uma gata que falasse, uma gata que soubesse dizer e repetir uma e muitas vezes:

— Sim — disse Mustafá Mond, meneando a cabeça — é natural que os senhores
estremeçam.

Nosso Ford — ou nosso Freud, como, por alguma razão inescrutável, preferia ser chamado sempre que tratava de assuntos psicológicos — Nosso Freud foi o primeiro a revelar os perigos espantosos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais — e, em conseqüência, cheio de aflição; cheio de mães — e, portanto, cheio de toda espécie de perversões, desde o sadismo até a castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias — cheio de loucura e suicídio.

— Entretanto, entre os selvagens de Samoa, em certas ilhas ao largo da costa da
Nova Guiné. . . O sol tropical envolvia como um mel morno os corpos nus das crianças que brincavam promiscuamente entre flores de hibisco. O lar era qualquer uma das vinte casas cobertas de folhas de palmeira. Nas ilhas Trobriand, a concepção era obra de espíritos ancestrais; ninguém jamais ouvira falar em pai.

— Os extremos se tocam — disse o Administrador. — Pela excelente razão que
eles foram levados a se tocarem.

Mães e pais, irmãos e irmãs. Mas havia também maridos, esposas, amantes. Havia também a monogamia e o romantismo.

— Se bem que os senhores provavelmente não sabem o que venha a ser tudo isso — observou Mustafá Mond.
Eles sacudiram a cabeça.

A família, a monogamia, o romantismo. Em toda parte o sentimento de exclusividade, em toda parte a concentração do interesse, uma estreita canalização dos impulsos e da energia.

— Mas cada um pertence a todos — concluiu, citando o provérbio hipnopédico.
Os estudantes aprovaram com um sinal de cabeça manifestando vigorosamente sua concordância a uma afirmação que mais de sessenta e duas mil repetições lhes tinham feito aceitar, não apenas como verdadeira, mas como axiomática, evidente por si mesma, absolutamente indiscutível.


*retirado do livro "Admiravel Mundo Novo", de Aldous Huxley

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