segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Nossas ruas são feitas de PEDRA(parte 4)


Juliano e Michel: Irmãos de Cachimbo

Deliberadamente maltrapilho, acompanhado apenas de uma máquina fotográfica e um bloco de notas, caminho até o viaduto onde a Borges de Medeiros cruza com a Loureiro da Silva. O lugar é um conhecido reduto de usuários em crack, e portanto não me surpreendo quando dou de cara com dois garotos preparando o cachimbo, protegidos pela escuridão da ponte. Eles olham para mim desconfiados, até que me aproximo. Indago se algum dos dois vende pedra. “Aqui eu não tenho não. Mas se quiser pego pra ti ali na boca. Só não dá pra tu ir lá assim, todo playboy, que os caras vão cagoetar contigo”, responde um dos jovens. Nesta hora me identifico como jornalista, e pergunto se posso conversar com eles. “Só se tu tiver uma grana pra nos dar”, indica o outro rapaz. Entrego dez reais para ele, e nos dirigimos até uma ruela próxima. Estaria mentindo se dissesse que não senti medo, mas acho que foi o fato de não ter demonstrado este temor que fez com que eu pudesse estabelecer uma conversa tranqüila com os dois meninos.

Logo que eu e um dos jovens nos sentamos, o outro encostou-se na parede e começou a pipar com tamanha voracidade que sua vida parecia depender daquela tragada. O que está sentado comigo, mais tranqüilamente, abre um sorriso de poucos dentes podres no rosto, e começa a desembrulhar uma trouxinha de plástico de onde tira o seu precioso cachimbo. Pergunto para ele se não tem medo de que alguém os veja. “Medo do quê? Quem vê nois e que tem medo, isso sim. To na minha, fumando meu bagulho sem fazer mal a ninguém”. Me dizem seus nomes. O que está fumando de pé, recostado na parede, se chama Michel, 17 anos, o mais desconfiado dos dois. Fica vigiando todo seu perímetro com uns olhos arregalados e injetados. O outro é Juliano, 20 anos, de uma serenidade surpreendente em contraste com o temperamento do amigo. Mostrando seu incômodo com a situação, Michel anuncia que vai na vila comprar mais crack, me deixando assim sozinho com Juliano que, desde o primeiro momento eu sabia, seria o porta-voz da dupla.


Com uma grande receptividade, como se estivesse ansioso por uma conversa, Juliano começa me falando da sua vida. “Agora eu to morando nas ruas, mas eu tenho família, sabe? Estudava também, quase me formei no colégio, ajudava meus irmãos menores. Mas eu sou adotado, tá ligado, e sempre noiei com o meu pai adotivo. Ele era da polícia, e tava sempre cagoetando todo mundo. Uma vez deu uma baita surra na minha mãe, daí eu me invoquei e dei uma camaçada de pau que quase matei ele. Fiquei jurado de morte pelo meu pai, daí eu nunca mais voltei pra casa, tive que mudar de cidade. Mas não me arrependo, gosto da vida das ruas”. Ele me diz que não se preocupa com um abrigo para repousar na noite, dorme muito pouco, a pedra lhe tira o sono por dias. Quando pergunto que drogas ele já experimentou, abre um novo sorriso e me responde com uma expressão de aparente orgulho. “Olha, não tem droga que eu não tenha experimentado. Nunca fui muito de beber, mas de resto foi tudo. Loló, maconha, cocaína, heroina, ácido, ecstasy, crack. Mas me perdi foi no pó mesmo. Hoje eu só fumo pedra e maconha”. No vício do crack Juliano já está faz três anos. Indagado sobre qual é o efeito da droga, o jovem explica que existem três momentos. “Primeiro vem o baque, que é aquela panca boa de felicidade, uma sensação de liberdade, uma vontade de sair gritando feito louco por ai. Daí quando passa o cara fica ligadão, tem que tá fazendo alguma coisa pra se mexer, senão a cabeça começa a pensar muita coisa. Depois vem a fissura, o cara fica noiado com tudo, sente que só vai passar quando pipar de novo.”

De um pequeno saquinho surgem os restos de uma pedra, que são despejados sobre o laminado no cachimbo e precisamente acesos. Deixo Juliano curtir seu momento de euforia por alguns instantes. Afinal este é o clímax pelo qual o usuário tanto espera, o ponto que, de uma maneira um tanto distorcida, faz tudo valer a pena. Quando ele continua a conversa, parece ainda mais confiante e receptivo. “Na real o crack nem é muito bom, pra mim é pior que pó e maconha. O foda é que vicia muito, o cara não consegue largar a pedra mesmo. Pelo menos em mim a panca ruim não pega forte, eu ainda consigo me controlar, mas tem gente que se perde mesmo e fica seqüelado pra sempre”. Pergunto ao jovem se ele alguma vez tentou parar com a droga, e a resposta vem acompanhada de um novo sorriso. “Já fiquei internado duas vezes: uma aqui em Porto Alegre e outra em São Leopoldo. Fiquei limpo um tempo, minha mãe me deu uma força. Mas não é fácil, não tinha onde ficar e acabei voltando pra rua, daí o cara fica uma semana na boa e depois já tá desesperado atrás da pedra de novo. Me arrependo de ter começado com isso, mas agora já é tarde. Mas minha cabeça é boa, ainda vou parar com o crack”.


Neste momento, Juliano interrompe sua linha de pensamento e, falando mais baixo, como se estivesse para revelar um grande segredo, começa a contar a história do amigo. “O Michel é um que perdeu tudo pro crack, e isso que começou faz só um ano, eu acho. Ele morava com a família numa vila em Viamão, mas teve que fugir depois que apagou um cara da boca lá. Uns meses atrás se meteu num assalto e apagou outro com uma faca. Quando ele tá fumado fica locão, perde a noção de tudo, tá ligado? Acha que á polícia tá atrás dele, ou é o barão da boca querendo passar ele. E tá sempre cachimbando, fuma pedra atrás de pedra, todo dinheiro vai pro vício. Só eu pra controlar ele mesmo, é como se eu fosse irmão nessas horas”. Aproveito a deixa para saber como os dois conseguem dinheiro para a compra do crack. “Se eu dissesse que nois não rouba, ia ser mentira. Quando a fissura é muita, fazemos o arrastão mesmo. Daí a gente fuma até não poder mais. Uma vez fumamos 600 pila numa noite, ficamos de patrão na boca. Mas isso é só de vez em quando, no mais nois pede nas ruas, cuida dos carros de noite”. A repressão da polícia também é grande, mas Juliano me revela que ultimamente muitos policiais tem feito vista grossa aos usuários de crack. “Quando eles tão de bobeira e vêem nois fumando, vão pra cima do cara e enchem de porrada. Já tomei muita surra de polícia, até já acostumei. O pior é se o cara tá vendendo alguma pedra, daí cagoetam mesmo e levam pra delegacia. Mas se tão apressado, passam direto por ti e nem fazem nada. Pra tu ver como já virou uma coisa comum nas ruas ver alguém fumando crack”, complementa.

Sobre a presença em Porto Alegre, Juliano não tem dúvidas da grande disseminação da droga. “Porto Alegre é terra de ninguém, o paraíso do crack. Dos que vivem nas ruas, é difícil achar um que nunca provou. E tá se espalhando que nem praga, o amigo passa para o amigo, que depois passa pra outro. No inverno que é pior, porque daí a gente fica com o pulmão fodido também. Tá cheio de morador de rua por ai com tuberculose de tanto fumar pedra, e com o frio muitos desses podem acabar morrendo”. Pergunto se ele se depara freqüentemente com algum jovem de classe média usuário de crack. “Na real não é sempre que se vê, mas de vez em quando aparece um playboy fissurado por um crack. Já peguei pra uns dois, porque eles tem medo de entrar na boca e pedir. Daí eles já compram um monte direto, 50, 100 pila, e deixam um troco pra nois. Mas sabe como é, pra playboy a pedra fica mais cara. Se nois pagamos cinco. eles pagam dez”.

Michel finalmente retorna da vila, com mais duas pedras. Ele me abre o pacote mostrando o volume amarelado, parecido com o de uns comprimidos esfacelados. “Isso daí vai tudo nesta noite, deve dar pra no máximo umas oito pipadas”, explica. Os garotos me autorizam a tirar mais algumas fotos, enquanto eles aproveitam o baque do crack. Porém Michel começa a ficar tenso novamente, pede pressa, dizendo que a polícia está por perto. Ele me encara novamente com aquele olhar desconfiado do início da conversa, e decido que é hora de ir embora. Juliano, com um derradeiro sorriso de dentes podres, me deseja sorte na matéria. Me despeço dos jovens e sigo meu caminho pela Perimetral, sobre o olhar apavorado de reprovação dos passantes.

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