sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um Ponto de Vista com Olhos Vermelhos ou As Peculiaridades do Trânsito Porto-alegrense



*publicando aqui o que vai estar na próxima Sextante


PRELUDIO


O ser - humano por vezes se esforça em mostrar que nem sempre o animal com mais cérebro é o mais inteligente. São 18h quando badalam os sinos da Igreja da Matriz, ressoando timidamente pelo gabinete presidencial da Assembléia Legislativa. Poucos minutos depois recolho meus pertences e parto em debandada, como milhares de outros trabalhadores espalhados por Porto Alegre que cumprem o mesmo protocolo. Reunindo-se como formigas, muitos corpos cansados vão retornar aos seus lares após a selvagem rotina diária na busca pelo dinheiro sagrado, pensarão em como a sua vida às vezes pode ser penosa e injusta, mas verão que sua indignação não será notada telepaticamente pela massa amorfa que passa. Finalmente, ao chegarem em suas casas, se entregarão hipnotizados e anestesiados para a cumplicidade da televisão, até que possam tombar exauridos na cama para ter pesadelos com as 10 prestações atrasadas da geladeira que a própria televisão os mandou comprar.

Outros, menos sortudos, não podem retornar para casa ainda. Apesar de terem sido auto-ejetados para as ruas desde quando o dia ainda era noite, estes sofredores têm mais compromissos pendentes a cumprir, como cursos técnicos profissionalizantes para encher a lingüiça de seus currículos, faculdades para melhorar a colocação no mercado de trabalho, ou até mesmo um outro emprego noturno para incrementar a renda. Enquanto o tempo passa correndo sem deixar vestígios, muitos cidadãos tornam-se escravos a costumes mercantilistas cada vez mais arraigados. O processo é tão anestesiante que certos viventes esquecem que existem coisas bacanas na vida além do dinheiro e de seu apelo ao individualismo e a cobiça. É claro que nem todos são assim, mas se algumas pessoas já não sabem mais relaxar a ponto de curtir os prazeres de uma boa trepada, beber uma cerveja gelada com os amigos ou mesmo ficar vadiando na beira do Guaíba assistindo ao pôr-do-sol, só me cabe dizer que cada um traça o destino que pode. Mas é importante ressaltar que não sei se era sobre isso que eu tinha que escrever por aqui.


A MATÉRIA, NO CASO


Saindo pelo prédio anexo do Parlamento, atravesso a faixa de segurança pela Duque de Caxias (num dos poucos locais onde o carro realmente dá a preferência para que o pedestre atravesse) e sigo meu caminho pela rua General João Manuel. Trata-se de um pequeno beco sem saída, local estratégico pela rara possibilidade de estacionar o carro sem precisar pagar por isto, além de ser ponto notório para que mendigos descarreguem seus excrementos. Sigo pelas ruas minadas desviando dos montes de bosta e moscas, passo por meu carro mas ainda não entro nele. Sigo até o final do beco, onde há uma escadaria que desce até a Rua Coronel Fernando Machado, refúgio discreto onde posso fumar meu baseado com mais tranqüilidade. Fico lá por uns 10 minutos relaxando, deixando que a cannabis lentamente vá se espalhando pela minha mente, enquanto algumas pessoas cruzam descendo os degraus, aparentemente indiferentes ao meu ato ilícito. Talvez um indicativo de que a hipocrisia da população em relação ao consumo de maconha está diminuindo, ou talvez seja apenas gente se blindando contra aquilo o que não quer ver. Tanto faz. Logo abaixo, na ampla marquise da escadaria, um jovem sem-teto envolto em papelão e velhos trapos dorme profundamente, alheio a todos que passam.

Então as 18h25, devidamente chapado e preparado psicologicamente para o embate com o trânsito, parto em direção ao Campus do Vale da UFRGS. Ligo o som e procuro me concentrar para interagir ao máximo com meu contexto urbano. O primeiro foco de engarrafamento ocorre já no cruzamento da Duque de Caxias com a Floriano Peixoto, há menos de 500 metros da Praça da Matriz. Carros se apinhando uns sobre os outros numa descida íngreme, disputando cada centímetro de distância em manobras desnecessariamente arriscadas. O sinal abre e, instantaneamente, o segundo carro da fila começa a buzinar para o da frente. É incrível como o trânsito está repleto de masoquistas. Gente que sente tesão em enfiar a mão na buzina para tornar ainda mais insuportável a cacofonia urbana. Preso noutra demorada sinaleira da rua José do Patrocínio sou abordado por Alexandre, vulgo Boca. Sem-teto, ele vende o jornal Boca de Rua para juntar uns trocados extras no seu orçamento de mendigo. Boa pessoa o Boca, certa vez me disse que gostava de morar nas ruas porque, apesar de estar sempre sendo julgado por seu estilo de vida vagabundo, tinha liberdade de fazer o que bem entendesse, e sentia prazer nessa liberdade. Compro um exemplar do jornal, desejo boa sorte a Boca e continuo minha jornada.

Entendo que o ser humano tenha tendências auto-destrutivas as vezes, estamos naturalmente vocacionados para o caos. O problema é que alguns retardados levam isso tão ao pé da letra que transformam seu trajeto urbano diário em verdadeiras guerras. E quando, perto do cruzamento da Venâncio Aires com a avenida João Pessoa, as sirenes de uma ambulância lançam seu rugido de alarme, o cenário assume seu caráter mais apocalíptico. O trânsito, já antes compactado ao extremo, obriga-se a encontrar espaços que não existem para a passagem do gigante de metal. Movimentos imprevisíveis e motoristas desatentos se embaralham na confusão. E quando é restabelecida a ordem, juntamente restabelecido está o engarrafamento. Nestes momentos, a melhor coisa a ser feita é trabalhar a otimização de virtudes como paciência e tolerância, pois não importa o quanto você vai se estressar, isso não vai influenciar na velocidade do congestionamento. Portanto relaxo e aprecio o belo visual oferecido pela bunda de uma vendedora do jornal O Sul. Sei que o conteúdo do impresso pode não ser de grande valor, mas deve-se admitir que a Rede Pampa é criteriosa em relação a escolha das bundas de suas vendedoras ambulantes.



O ápice da concentração de carros ocorre no encontro da Venâncio Aires com a Oswaldo Aranha quando o relógio marca 18h45. Aqui as noções de civilidade e respeito chegam a seus níveis mais selvagens, é cada um por si e o veículo maior contra todos. Os ônibus são como monstros prontos para engolir tudo aquilo que passar sua frente. Mas dentre todos os motoristas assassinos, os mais sanguinários são os que guiam os coletivos da empresa Viamão. Para ser contratado pela Vimão, o condutor deve ter no histórico envolvimento em ao menos três incidentes fatais no trânsito, além de comprovante médico atestando insanidade mental. Sigo pela Protásio Alves para tornar meu martírio ainda mais agonizante, rastejando entre as nuvens do céu e os grossos anéis de fumaça liberados dos escapadores. Motivado por tanta fumaça, decido adicionar um nova ponto ao meu itinerário, e pego a direita pela Barão do Amazonas rumo a boca da Conceição. Já é quinta feira e minha maconha acabou, portanto é imprescindível providenciar uma mão para estar bem preparado para o final de semana. Acompanhando o fluxo sempre lento dos carros, fica visível que os espécimes mecânicos encontrados mais abundantemente são os táxis laranjas, espalhados como rápidas pulgas por todos os lados que se vê. Os táxis, uma necessidade relativa à prisão que o homem tem ao relógio, sempre vivendo no limite do horário, com pressa para chegar em mais compromissos do que realmente poderia se comprometer, recorrendo quando necessário a imprudência destes estricnados veículos.

Não sou muito chegado ao caos urbano. Prefiro o estilo de vida de cidades pequenas e mais acanhadas ao furor de uma metrópole como Porto Alegre, mas existem algumas características que tornam mais aprazível a vida na capital gaúcha. Pelo fato de estar envolta por tantos morros (65% da área do município é composta por eles), vez que outra nos deparamos com belas vistas ao redor. Como quando estou subindo o Morro Santo Antônio e vejo, pelo alto, a cidade se recortando entre árvores e prédios. Entro com o carro pelo beco onde uma pequena fila de outros veículos espera pacientemente para poder adquirir suas reservas de maconha e cocaína. Tudo funciona como num drive-in, você chega, escolhe o produto, paga a quantia e cada um segue feliz para o seu lado. Um comércio tão prático quanto necessário para suprir a ânsia de todos aqueles que querem experimentar percepções transcendentais sobre o mundo através de psicotrópicos. O único risco que existe, além da possibilidade eminente da droga estar em falta, é o de a polícia aparecer para suas esporádicas ronda em volta da boca. Brigadianos se empenhando para barrar o avanço dos narcóticos, a polícia faz a sua parte tentando manter a lei. Mas a verdade é que este problema já não deveria mais ser apenas de responsabilidade polícial, a sociedade precisa perceber as mudanças claras no comportamento da juventude do século XXI para debater com seriedade a questão das drogas. Para minha infelicidade, apenas a maconha de dois estava disponível, o que significava que meus próximos baseados seriam verdadeiras bombas para compensar a baixa qualidade da erva.

Desço de volta para a Bento Gonçalves enquanto a cidade continua pulsando em seu ritmo frenético, que é contraditório ao sentimento de letargia que acomete o motorista infectado pela síndrome da hora do rush. Escapando pelos auto-falantes do carro, Bob Dylan profetiza que a vida não passa de uma piada em “All Along The Watchtower”. Sou obrigado a concordar com o músico, nossas vidas são comédias privadas e temos que saber encarar a situação toda com menos seriedade e mais risadas, senão corremos o risco de ficar realmente loucos. São 19h04, e vou avançando pela avenida acompanhado do zumbido das motocicletas que, agilmente, vão cortando as pistas, escapando entre as frestas. Movem-se feito enxames, em grupos que instintivamente se protegem das maquinas maiores do trânsito. Aqui o fluxo já corre mais, e por isso mesmo a presença dos pardais, que engordam os cofres públicos explorando a distração do ser-humano. Mas se não devemos correr, por que diabos fazem nossos carros tão velozes? Marcam 19h11 quando cruzo os portões da UFRGS, 46 minutos após a arrancar com o celta branco pela rua Duque de Caxias, no centro de Porto Alegre, 15 quilômetros distante. Já é bastante tempo, a metade de uma partida de futebol, mas ainda uma brincadeira infantil perto do psicótico trânsito de São Paulo, onde motoristas impotentes chegam a passar 6 horas a mercê das intempéries dos trajetos urbanos. Estaciono o carro e é assim que a matéria termina.

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