Despertei um dia, via que chovia mas sentia que não podia.... nada podia, nada seria, apenas sonho viria
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
O ser fútil
O ser fútil é deveras interessante para aqueles raros que estão acima nas hierarquias sociais, e são responsáveis pelo controle estrutural quase absoluto da religião, economia, política, etc. Possuindo pouca capacidade de abstração, o ser fútil não busca alterar a ordem vigente das coisas, torna-se um burocrata que simplesmente participa da trama, um fantoche maleável e acrítico nas mãos daqueles poucos que verdadeiramente tomam as decisões. O estímulo a uma interpretação abstrata das coisas do mundo é repudiada em detrimento duma robotização e massificação intelectual do ser humano, facilitando assim sua manipulação.
Apesar de não saber, o ser fútil tornou-se escravo de certos conceitos do qual, no decorrer da história, ele próprio foi o grande difusor. Por serem muitos, e em sua essência extremamente parecidos, os seres fúteis passaram a correr atrás de artifícios capazes de camuflar tamanha homogeneidade leviana inerente a sua natureza, e com esse intuito estimularam uma mercantilização desmedida de todas as coisas. O ser fútil sente a necessidade de se diferenciar perante seus pares igualitariamente acéfalos, portanto almeja luxuosos carros, roupas de grife, narizes perfeitos e majestosos televisores de plasma. O materialismo e narcisismo são a essência máxima do ser fútil, que idolatra o shopping e o poder do dinheiro, e esquece completamente de sua subjetividade.
O ser fútil, raras vezes, pensa estar apegado a algum conceito de Deus, um ser metafísico de natureza incompreensível. E se assim pensar, dificilmente irá questionar as razões da sobrenatural onipotência desta presença onírica, simplesmente porque o ser fútil não busca entender de complexas questões existenciais, sua mente ignóbil está blindada contra tais reflexões, influída por exemplo pela ditadura televisiva, indústria cultural e banalização das idéias. O que na realidade ocorre, é que o grande Deus do ser fútil é ele mesmo, o ser fútil, já demasiadamente, e por diversas frentes, estimulado numa ordem baseada pela adoração do ser como estrutura atomizada e independente do resto da sociedade, a insuflar seu ego ao ápice.
Enquanto sua existência vai caindo ao abismo niilista da sociedade pós-moderna, no qual os dogmas religiosos e sociais já foram em sua maioria desmistificados por uma exagerada e anti-social ideologia positivista, o ser fútil é maquinado a ter seu próprio cérebro trancafiado numa confusa rede de incoerentes sinapses. Aos poucos vai distorcendo sua percepção das coisas, e mingua a capacidade de questionar o mundo e a maneira que ele próprio interage em tal contexto. O ser fútil perdeu a paixão, não se assombra mais com a imensidão do céu, nem se maravilha com as cores do crepúsculo. O ser fútil provavelmente não irá ler esse texto, mas se por algum descuido ou resquício de sensibilidade o fizer, certamente não entenderá porra nenhuma.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Acerca de livros e ignorantes
Por aqui se vê como é necessário a qualquer pessoa que aspire a um conhecimento verdadeiro examinar as definições dos primeiros autores, ou para corrigi-las, quando tiverem sido estabelecidas de maneira negligente, ou para apresentar as suas próprias. Pois os erros de definições se multiplicam à medida que o cálculo avança e conduzem os homens a absurdos, que finalmente descobrem, mas que não conseguem evitar sem calcular de novo, desde o princípio, no que reside a base de seus erros. De onde se segue que aqueles que acreditam nos livros procedem como aqueles que somam muitas pequenas somas numa maior, sem atentarem se essas pequenas somas foram ou não corretamente somadas; e finalmente encontrando o erro visível, e não duvidando das suas primeiras bases, não sabem que caminho seguir para se esclarecerem, mas gastam tempo azafamando-se em torno de seus livros, como aves que, entrando numa chaminé e vendo-se fechadas num quarto, adejam em torno da enganadora luz de uma janela, por não possuírem a sabedoria suficiente para atentarem por que caminho entraram. De tal modo que na correta definição de nomes reside o primeiro uso da linguagem, o qual consiste na aquisição de ciência; e na incorreta definição, ou na ausência de definições, reside o primeiro abuso, do qual resultam todas as doutrinas falsas e destituídas de sentido; o que torna aqueles homens que tiram sua instrução da autoridade dos livros, e não de sua própria meditação, tão inferiores à condição dos ignorantes, quanto são superiores a estes os homens revestidos de uma
verdadeira ciência. Pois entre a verdadeira ciência e as doutrinas errôneas situa-se a ignorância. A sensação e a imaginação naturais não estão sujeitas a absurdos. A natureza em si não pode errar; e à medida que os homens vão adquirindo uma abundância de linguagem, vão-se tornando mais sábios ou mais loucos do que
habitualmente. Nem é possível sem letras que algum homem se torne ou extraordinariamente sábio, ou (amenos que sua memória seja atacada por doença, ou deficiente constituição dos órgãos) extraordinariamente louco. Pois as palavras são os calculadores dos sábios, que só com elas calculam; mas constituem a moeda dos loucos que a avaliam pela autoridade de um Aristóteles, de um Cícero, ou de um Tomás, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem.
*Extraido do Leviatã, de Hobbes
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Licor de Merda
*Abaixo, o contra-rótulo original da primeira garrafa, de 1974.
_ O "LICOR DE MERDA" é um produto de alta qualidade, cuja fórmula pertenceu no final do século XX ao Frade maluquinho BASKU GONSALBES.
É extraído a partir de diversas merdas de confiança, sujeito portanto a criar depósito com a idade.
Recomenda-se que seja servido com o cuidado indispensável para não turvar._
Licor Artesanal de Cantanhede, Portugal. Composição: Baunilha, Cacau, Leite, Canela, Açúcar e Citrinos. Produção controlada por rótulos numerados
O deus Tempo em Lilipute
*A mando do imperador, os pequenos do reino de Lilipute revistam Gulliver, o Homem-Montanha, fazendo um minucioso inventário de cada coisa que vêem. Ao encontrarem o relógio de bolso, ficam intrigados com a poderosa definição conceitual acerca do tempo.
"Do bolso direito do cinto, pendia uma grande corrente de prata, com uma maravilhosa espécie de mecanismo na extremidade. Ordenamos que mostrasse o que quer que estivesse
na ponta daquela corrente. Parecia ser um globo, metade de prata e metade de algum metal transparente. Do lado transparente, vimos certas figuras estranhas, desenhadas em círculo. Ele pôs seu mecanismo junto aos nossos ouvidos. Fazia um ruído contínuo, algo como um“tique-taque” repetido. Supomos que é algum animal desconhecido ou o deus que ele adora. Estamos mais inclinados para a última opinião, já que ele nos assegurou que raramente faz alguma coisa sem consultá-lo."
*Extrato de "As Viagens de Gulliver", de Jonathan Swift.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
A extraordinária história de Ariri Pistola
Em vista que o Google não possuí referências concretas sobre o ilustre personagem, contabilizo um pequeno favor aos anais da história digitalizada. Um tanto longo, eu sei, mas vale a pena ler até o final.
Não se sabe ao certo quando Ariovaldo Jesus Ferreira nasceu, mas especula-se que tenha sido por volta de 1830 num pequeno casebre no inóspito sertão cearense, concebido como caçula de outros cinco irmão homens. O pai foi morto numa emboscada quando Ariovaldo ainda era criança, e o restante da família foi pouco a pouco se desintegrando pelas doenças da fome ou por balas efêmeras de destino certeiro. No decorrer deste caminho sem rumo dos nômades famintos, o caçula se viu sozinho no mundo quando a mãe exaurida pela anemia não acordou de um sono sem sonhos. A desnorteada criança foi acolhida por Virgílio, um velho e solitário fazendeiro, a muito tempo a espera da ceifeira maldita para encontrar o filho que nunca teve e a mulher, que morreu durante o parto. Ariovaldo tornou-se um bom vaqueiro, trabalhava com o artesanato do couro e logo aprendeu a manusear uma pistola. A criança virou adulto quando, num suspiro, Virgílio expirou sua passagem terrena para juntar-se a família perdida, deixando a fazenda e todos os bens ao menino que tornou seus últimos anos de vida um pouco menos ordinários.
Ariovaldo passou então a ocupar-se com abnegação das tarefas para manutenção da propriedade, decidido a manter viva a herança do velho Virgílio. Com o passar do tempo, e o aporte dos sortudos, fez multiplicar seu gado e expandiu as terras a ponto de logo se tornar um respeitável fazendeiro na miserável região. Contratou peões para cuidar dos seus limites e trabalhar a rês, vendendo o couro e a carne aos comerciantes de Quixadá. Cresceu com os mesmo perfil viril e rude do pai que não conheceu, sendo um homem sisudo cujo espírito permanecia fechado em si mesmo. Contudo, a maturidade precoce lhe trazia o vazio da solidão, e Ariovaldo passou a ficar incomodado com a idéia de sua natureza ermita lhe afastar do convívio com mundo . Foi quando, numa de suas raras idas até a cidade, conheceu Aparecida, filha de um vendedor errante que trazia estranhas bugigangas do Pernambuco. Mesmo que sua beleza fosse apenas discreta, a moça possuía uma docilidade natural e uns olhos negros e profundos que hipnotizaram por completo o fazendeiro. Trocaram alguns olhares e logo viraram cúmplices de uma paixão secreta e sem palavras. Ariovaldo passou a freqüentar a cidade todos os dias apenas para poder estar próximo de Aparecida, e vez que outra comprava com ela algum treco de parafusos e manivelas que não tinha idéia para que serviam, e pedia explicações só para poder ouvir a voz tímida mas decidida da jovem. No final das contas, o mercador voltou acompanhado apenas de suas bugigangas para Pernambuco, convencido que salvaria a filha do seu duro destino errante ao vê-la casada com o bom fazendeiro Ariovaldo.
Aparecida deu a luz a um menino na primavera do ano seguinte, que Ariovaldo batizou de Virgílio. A mulher e filho incutiram um sentimento novo, uma mistura de amor e compaixão, no coração endurecido daquele sertanejo sisudo que já havia presenciado a derrocada da própria estirpe. Formavam uma família feliz, que vivia satisfeita em apreciar os pequenos prazeres da simples vida sertaneja. Enquanto Aparecida ocupava suas horas com os cuidados ao pequeno rebento e na manutenção da casa em ordem, Ariovaldo se divertia acertando galhos secos e crânios de bode com o mosquetão do velho Virgílio, a ponto de tornar-se um hábil pistoleiro. Aplicava-se ainda ao trabalho com o gado, que milagrosamente multiplicou-se alheio a uma das maiores seca que o Ceará já havia presenciado, a qual deixou grande parte dos fazendeiros locais em profunda miséria. Certa feita o conhecido coronel Rubião, mais poderoso senhor das terras e dono da política em Quixadá, impaciente pelo fato de seu antes incontável gado estar minguando verticalmente frente as calamidades do clima, chegou a casa de Ariovaldo ralhando uma indecorosa proposta de negócio que apenas favoreceria ao próprio coronel, além da promessa de participação no poder público local. Ariovaldo recusou a proposta e Rubião, com a alma untada em ódio e maus pensamentos, jurou para si mesmo que não deixaria aquele frangote rabudo tomar o seu lugar como soberano na região.
Então, uma noite, enquanto dormia num vilarejo vizinho onde esporadicamente vendia gado, Ariovaldo acordou sobressaltado de um estranho pesadelo com um urubu que expelia fogo pela boca. Juntou suas coisas e partiu ligeiro no lombo do cavalo, até que, quando viu de longe as grandes chamas do Diabo consumindo lentamente sua propriedade, entendeu o mau presságio do sonho. A rês ou havia sido roubada ou se dispersado pelo sertão, e nenhum de seus funcionários agora mortos poderia contar a história. Ariovaldo não demorou para encontrar a mulher caída sem vida na varanda em frente a casa, com um tiro no peito e a genitália mutilada, ao lado do pequeno bebê cuja cabeça havia sido decaptada. O viúvo manteve seu aspecto exterior duro, não despejou uma lágrima e sequer deixou transparecer a dor da perda, mas internamente sentiu sua alma dilacerada. Era certo, havia sido então aliciado pelo Belzebu, e seu destino, desde sempre tão próximo ao da ceifeira maldita, estaria agora irrevogavelmente atrelado a necessidade por morte e a vingança.
A partir deste ocorrido, muito pouco se sabe sobre como os nebulosos anos se passaram para Ariovaldo, mas seu rastro de destruição e morte ficaram gravados na retina daqueles poucos que tiveram a má-sorte de sobrevier aos seus ataques. Começou com o brutal assassínio da família de Rubião, quando Ariovaldo conheceu na prática quão bom atirador havia se tornado, ao liquidar sozinho, munido de duas pistolas, todos os 14 jagunços que guardavam o patrimônio do coronel, para após matar com tiros certeiros os dois varões da família e estuprar a esposa, antes de cortar-lhe a garganta com a pecheira. Então, tomado pela raiva, Ariovaldo decepou os braços e pernas de Rubião, que teve de assistir entre uivos de dor ao dantesco teatro de sua penitência, culminando na queima da propriedade e a liberação do gado. Ariovaldo deixou de existir para o mundo como reles mortal ao estabelecer, na fazenda em chamas de Rubião, embebido pelo sangue das tripas de seu maior inimigo, um pacto eterno com o Diabo.
Nunca mais ele foi visto em Quixadá. Passou a ser conhecido como Ariri Pistola, e formou com outros seis homens de alma perdida um dos primeiros e mais temidos grupos de extermínio da história do cangaço. Seus requintes de crueldade só não tornaram-se mais notórios porque não deixava rastros, ninguém sobrevivia a empreitada. Queimava vilas inteiras, violentava as mulheres, decapitava as crianças e sua marca registrada era deixar alguns dos homens ansiando por uma morte célere, com os membros decepados e a genitália mutilada enfiada pela boca. O espólio dos saques era dividido pelo bando, enquanto Ariovaldo se preocupava apenas em dar continuidade a sua maldita sina da morte, acompanhado sempre pelo velho mosquetão do esquecido Virgílio. Reza a lenda que ele, no decorrer de sua passagem terrena, foi o responsável pelo assassinato de cinco mil infelizes por todo o Nordeste. Sobreviveu a dezenas de emboscadas, mas o mesmo destino não se sucedeu aos outros membros de seu grupo, que um a um foram capturados e tiveram a cabeça decapitada exposta como prêmio. Ariri Pistola, por sua vez, escapava como uma sombra errante sem deixar vestígios, ao passo que sua própria existência acabou sendo posta em dúvida, e ele passou a ser mais uma temida figura mitológica do imaginário popular do que um demônio real. Dizem que, já quase centenário, juntou-se incógnito ao grupo de cangaceiros de Lampião, onde sua alma trucidada pelo ódio pode manter um resquício de paz pelos tiros ainda certeiros da juventude. Então, certa vez desapareceu rasteiro para nunca mais ser visto por olhos humanos, apesar dos boatos de que continua até hoje morto em vida vagando pelas cidades que destruiu, atormentando as almas penadas.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
O mau presságio
No começo todo mundo pensou que fosse uma peste. As donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros mortos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam no rio às carradas. No Domingo da Ressurreição, o centenário Padre Antonio Isabel afirmou no púlpito que a morte dos pássaros obedecia à má influência do Viseu Errante, que ele mesmo tinha visto na noite anterior. Descreveu-o como um híbrido do de bode cruzado com fêmea herege, uma besta infernal cujo alento calcinava o ar e cuja visita determinaria a concepção de monstros pelas recém-casadas. Não foram muitos os que prestaram atenção à sua conversa apocalíptica, porque o povo estava convencido de que o pároco tresvariava por causa da idade. Mas uma mulher acordou todo mundo na madrugada de quarta-feira, porque encontrara uns rastos de bípede de casco fendido. Eram tão verdadeiros e inconfundíveis que os que foram vê-los não puseram em dúvida a existência de uma criatura horrível semelhante à descrita pelo pároco e se associaram para montar armadilhas nos quintais. Foi assim que levaram a efeito a captura.
Duas semanas depois da morte de Úrsula, Petra Cotes e Aureliano Segundo acordaram sobressaltados com um choro de bezerro descomunal que chegava da vizinhança. Quando se levantaram, já um grupo de homens estava soltando o monstro das afiadas varas que tinham posto no fundo de uma fossa coberta com folhas secas, e ele já deixara de berrar. Pesava como um boi, apesar da sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e das suas feridas manava um sangue verde e viscoso. Tinha o corpo coberto por um pêlo áspero, cheio de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de caracas, mas ao contrário da descrição do pároco, as suas partes humanas eram mais de anjo doente do que de homem, porque as mãos eram limpas e hábeis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de asas potentes, que deveriam ter sido desbastadas com machado de lavrador. Penduraram-no pelos tornozelos numa amendoeira da praça para que ninguém ficasse sem vê -lo e quando começou a apodrecer incineraram-no numa fogueira, porque não se pôde determinar se a sua natureza bastarda era de animal para jogar no rio ou de cristão para sepultar. Nunca se verificou se na realidade foi por causa dele que morreram os pássaros, mas as recém-casadas não conceberam os monstros anunciados, nem diminuiu a intensidade do calor.
*Extraido do livro "Cem anos de solidão", de Gabriel Garcia Marquez
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