sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Garranchos


Incessante
Movimento na busca
Pelas cores mais vivas
Pelos garranchos mais
Cândidos

A beleza da feiura
A estranheza do diferente
Rabisco de tantos seres
Superiores
Moldados em formas
Dúbias

Onda após onda de pura
Singularidade
Nas percepções únicas
Dum turbilhão de
Inata originalidade

Sol, mar, amor
Estrelas, vergonha
Nuvens de poeira
Passando
Garranchos de um
Vagabundo
E só dele
Só dele

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Cada um pertence a todos


Num pequeno espaço gramado entre altas moitas de urzes mediterrânea5- duas crianças, um garoto de cerca de sete anos e urna menina que poderia ter um ano a mais, dedicavam-se muito gravemente, com toda a atenção concentrada de sábios absortos em algum trabalho de descoberta, a urn jogo sexual rudimentar.

— Lembram-se todos — disse o Administrador, com sua voz forte e profunda —
lembram-se todos, suponho, daquelas belas e inspiradas palavras de Nosso Ford: "A História é uma farsa". A História — repetiu pausadamente — é uma farsa.

Mustafá Mond inclinou-se para a frente, brandiu diante deles seu dedo indicador:
— Procurem compreender — disse, e sua voz causou-lhes um frêmito estranho na região do diafragma. —Procurem compreender o que significava ter uma mãe vivípara.

Novamente aquela palavra obscena. Mas dessa vez, nenhum deles pensou em sorrir.

— Procurem imaginar o que significava "viver no seio da família".
Eles tentaram imaginar; mas, evidentemente, sem nenhum êxito.

— E sabem o que era um "lar"? Abanaram a cabeça.

O lar, a casa — algumas peças exíguas, onde se apinhavam, de maneira sufocante, um homem, uma mulher periodicamente prolífica, um bando de meninos e meninas de todas as idades. Falta de ar, falta de espaço; uma prisão insuficientemente esterilizada; a obscuridade, a doença, os cheiros.

(A evocação feita pelo Administrador era tão vivida, que um dos rapazes, mais sensível que os outros, só com a descrição empalideceu e esteve a ponto de vomitar.)

E o lar era tão sórdido psiquicamente quanto fisicamente. Do ponto de vista psíquico, era uma toca de coelhos, um monturo, aquecido pelos atritos da vida que nele se comprimia. Que intimidades sufocantes, que relacionamento perigoso, insensato, obsceno, entre os membros do grupo familiar! Insanamente, a mãe cuidava de seus filhos(seus filhos). . . cuidava deles como uma gata cuida de seus filhotes. . . mas como uma gata que falasse, uma gata que soubesse dizer e repetir uma e muitas vezes:

— Sim — disse Mustafá Mond, meneando a cabeça — é natural que os senhores
estremeçam.

Nosso Ford — ou nosso Freud, como, por alguma razão inescrutável, preferia ser chamado sempre que tratava de assuntos psicológicos — Nosso Freud foi o primeiro a revelar os perigos espantosos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais — e, em conseqüência, cheio de aflição; cheio de mães — e, portanto, cheio de toda espécie de perversões, desde o sadismo até a castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias — cheio de loucura e suicídio.

— Entretanto, entre os selvagens de Samoa, em certas ilhas ao largo da costa da
Nova Guiné. . . O sol tropical envolvia como um mel morno os corpos nus das crianças que brincavam promiscuamente entre flores de hibisco. O lar era qualquer uma das vinte casas cobertas de folhas de palmeira. Nas ilhas Trobriand, a concepção era obra de espíritos ancestrais; ninguém jamais ouvira falar em pai.

— Os extremos se tocam — disse o Administrador. — Pela excelente razão que
eles foram levados a se tocarem.

Mães e pais, irmãos e irmãs. Mas havia também maridos, esposas, amantes. Havia também a monogamia e o romantismo.

— Se bem que os senhores provavelmente não sabem o que venha a ser tudo isso — observou Mustafá Mond.
Eles sacudiram a cabeça.

A família, a monogamia, o romantismo. Em toda parte o sentimento de exclusividade, em toda parte a concentração do interesse, uma estreita canalização dos impulsos e da energia.

— Mas cada um pertence a todos — concluiu, citando o provérbio hipnopédico.
Os estudantes aprovaram com um sinal de cabeça manifestando vigorosamente sua concordância a uma afirmação que mais de sessenta e duas mil repetições lhes tinham feito aceitar, não apenas como verdadeira, mas como axiomática, evidente por si mesma, absolutamente indiscutível.


*retirado do livro "Admiravel Mundo Novo", de Aldous Huxley

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O Final dos Tempos


Nos últimos tempos tenho tido um sonho com uma temática recorrente, e de certa forma bastante lúcido. O último começou as 31:97, quando eu percebi que o tempo era mera formalidade e voltei a dormir. Então me vi pairando em alguma larga rua do Moinhos de Vento, e milhares de pessoas assistiam em um telão a investigação que a mídia estava fazendo sobre o emissário do demônio Jean Claude Van Damme, que alguns dias antes havia profetizado o final dos tempos numa grande chuva de meteoros. A mídia especulava sobre que ligação os filmes do ator poderiam ter com o apocalipse, mas só noticiava fofocas não comprovadas e absurdas até mesmo para um sonho. Ao lado do telão, mais uma multidão observava curiosa a colossal e bizarra edificação enviada pelo Belzebu, que havia brotado em um grande terremoto e parecia derreter em magma. Aquilo tudo parecia muito normal tanto para mim, que já havia presenciado o final dos tempos antes, quanto para as outras pessoas, que riam e conversavam tranqüilamente. Daí me deparei com um amigo, Gustavo, e perguntei: “Então, mais uma vez o fim do mundo?”, e ele respondeu: “Pois é, o quarto que eu vejo neste mês. É bonito”.

Após a rápida conversa começo a ouvir os velhos do Sala de Redação, que ao invés de debaterem futebol estão falando de música e tocando trechos de belas músicas próprias suas, acompanhados do violão e da harmônica. Fico voando pelo local da gravação, um velho e mal iluminado galpão, onde constam apenas os participantes do programa, suas respectivas cadeiras e microfones, além de uma fina roda de madeira extremamente empoeirada e suja onde está acoplada a harmônica, que serve de mesa e fica girando para quem quiser tocar o instrumento. Lauro Quadros está reclamando da sujeira da roda quando Sant’Ana anuncia que o mundo ia acabar naquele momento, e começa uma comemoração. Então, retorno ao meu quarto onde meu irmão observa estático pela janela do banheiro o clarão que se aproxima. Percebo a forte luz vermelha crescendo num som de passáros cantando, exclamo um “Mas já agora?” e finalmente acordo, ainda com a algazarra das aves. Me levanto e abro a janela, onde um gato negro dormia no parapeito

Sei lá se isso tudo tem algum sentido ou sequer vale ser citado, mas agora é tarde.